quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Os Estatutos do Homem – Thiago de Mello

 Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
Agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos
pela vida verdadeira.
Artigo II
Fica decretado
que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras
mais cinzentas, têm direito
a converter-se em manhãs
de domingo.
Artigo III
Fica decretado que,
a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer,
o dia inteiro, abertas para o verde
onde cresce a esperança.
Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul
do céu.
Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos
terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII
Por decreto irrevogável
fica estabelecido o reinado permanente
da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada
na alma do povo.
Artigo VIII
Fica decretado
que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar amor
a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta
o milagre da flor.
Artigo IX
Fica permitido
que o pão de cada dia
tenha no homem
o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo
Tenha  sempre
o quente sabor
da ternura.
Artigo X
Fica permitido
a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.
Artigo XI
Fica decretado,
por definição,
que o homem
é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo
que a estrela da manhã.
Artigo XII
Decreta-se que nada
será obrigado nem proibido.
Tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar o sol
das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará
em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
Artigo Final
Fica proibido
o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
ou como a semente do trigo
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

          Os Estatutos do Homem foram escritos em abril de 1964 quando o poeta Thiago de Mello era adido cultural da embaixada do Brasil no Chile. 

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2 comentários:

Osman Plaisant Neto disse...

Maravilhoso?!
Nao me atrevo a dizer mais,agora.

Martha Pires Ferreira disse...

Sim, maravilhoso, Osman!