Meu contato humano com Raphael
Martha
Pires Ferreira
Em 1968 conheci Dra.
Nise da Silveira, a quem levei meus desenhos. Pela semelhança dos traços, Dra.
Nise me convidou a vir até aqui na STOR (Setor de Terapêutica Ocupacional e
Recuperação), a fim de conhecer os trabalhos de Raphael, o que fiz poucos meses
depois.
Cheia de admiração,
vi o quanto nossos desenhos têm em comum quanto ao grafismo. Linhas puras em
traços livres. Manusear toda a sua obra foi algo de impressionante. Voltei para
casa em silêncio. Não conseguia falar sobre a impressão causada. E recordo;
passei alguns dias pensativa. Os desenhos de Raphael surgiam nítidos aos meus
olhos. Eu quase pude compreender o porquê de um homem com tal dose de
sensibilidade viver totalmente rompido com a realidade externa. E a cada dia
compreendo mais. Senti uma dor profunda e um respeito imenso dentro de mim. Eu
sabia apenas que se tratava de um dos muitos internados no Hospital, aqui
vivendo há cerca de trinta anos, em plena solidão, e que há mais de dezoito
anos não desenhava como antes, desenhos maravilhosos que estão aí no Museu para
todos nós vermos com a alma.
Raphael se protegeu
no silêncio, perdeu o elã para o desenho. A realidade grosseira do mundo
externo o impediu de estabelecer conceitos de vida, de se relacionar
harmoniosamente com as forças da natureza. Mal começava a dar forma aos seus
afetos, a desenvolver suas forças criativas no que há de mais sensível e
íntimo, foi dilacerado, rompeu com a realidade externa, se fragmentou ou foi
fragmentado (como as coisas se passam eu não sei, é um mistério absurdo!).
Conhecer toda a sua
obra é estar em contato vivo com o gênio criador, é plasmar a beleza dos
sentidos mais refinados e penetrar no próprio segredo da imaginação onde fluem
as mais autênticas formas de expressão, percepção das mais apuradas. O desenho
em si merece um estudo no sentido plástico. Ele se inclui sem qualquer dúvida
entre os melhores do Brasil e do mundo. O crítico de arte Mário Pedrosa
escreveu sobre os desenhos de Raphael, mas seria extraordinário que outros
escrevessem com o mesmo interesse.
Em fins de 1969,
voltei ao hospital e aproveitei a ocasião para entrar em contato com Raphael.
Eu quis conhecê-lo de perto. Entrei no ateliê de pintura, observei o homem de
feições delicadas e de mãos leves a traçar risquinhos no papel, e que mãos!
Docemente, depois de
longo tempo de observação, perguntei o que estava desenhando. Permaneceu em
silêncio como se eu nem existisse. Pediram que ele falasse comigo, não me deu a
menor atenção. Continuou nos seus tracinhos sem ao menos me olhar. Fiquei
observando por algum tempo mais – baixinho e risonha disse para ele: “esses
tracinhos parecem canto de pássaros, ti... ti... ti...”. Para surpresa geral,
ele levantou os olhos amêndoas e repetiu; “canto de pássaros”, e novamente
mergulhou no silêncio.
Saí da sala
enternecida. Raphael, os outros hóspedes da casa entregues aos seus trabalhos
de criação, os cachorros, os gatos, o cuidado das monitoras, as árvores que se
podiam ver lá fora; tudo me emocionou. Senti um bem-estar especial.
Comentei com Dra.
Nise o meu encontro com Raphael. Ela se levantou da sua cadeira, os olhos
brilharam, e me sugeriu trabalhar aqui com ele. Viu em mim uma possível
catalisadora das energias psíquicas desse grande artista. Não hesitei, a
impressão que Raphael me causou com sua leveza e o seu mistério, mais a maneira
altamente humana com que o pedido me foi feito, fizeram com que eu me sentisse
diante de um apelo maior vindo do mais profundo de meu ser, uma predisposição
diante do desconhecido.
Raphael é e sempre
será um enigma para todos nós, mas jamais um ser que perdeu o calor humano, o
afeto, a percepção da realidade grosseira que nos cerca. Raphael é um ser
humano como outro qualquer, ele vibra em sua natureza mais íntima, apesar de se
refugiar no isolamento. Pude constatar ao vivo que nele subsistem os mais
variados sentimentos, a dor mais profunda ou a ternura de um ser tranquilo.
Contrastes tantos!
Num puro contato
afetivo pude observar que ele sempre se sente satisfeito de alguma forma com a
minha presença. Os carinhos que faço em suas mãos são retribuídos com a mesma
afetuosidade, as palavras ditas sem exageros e com simplicidade são acolhidas
com refinada emoção. Raphael é um homem nobre nos gestos, no olhar doce e
meigo, nos levíssimos toques de acariciamento em meu rosto, em minha cabeça, em
minhas mãos, em meus seios, por vezes, e em minhas pernas ou pés. São toques
levíssimos, gratuitos e sutis.
Nenhuma só vez
deixou de se comunicar comigo de alguma forma. De junho de 1971 a julho de 1972
estive ausente por razões de viagem, o que em muito atrapalhou o nosso
relacionamento. Um ano de ausência foi muito, foi demais.
Com espontaneidade,
o lúdico se faz presente e atuante, nesse meu desejo de fazer Raphael ter em
mim uma amiga, alguém que gosta muito dele, que vem visitá-lo e ficar a seu
lado com a mesma naturalidade com que normalmente ficamos com os amigos de que
gostamos. Uma aproximação em que o sentimento é a mola mestra ou mágica de
tudo.
Foi em novembro de
1969 que iniciei minha atividade, o meu contato regular com Raphael Domingues.
Logo no primeiro dia
falei das árvores e do sol lá fora. Imagens poéticas para dar início à nossa
aproximação humana – nada de artifícios, tudo muito espontâneo.
Quase na hora de ir
embora, uma das monitoras se aproximou e brincando se dirigiu a Raphael: “Você
arranjou uma namorada, hein? Como é o nome dela?” Levantou a cabeça, olhou fixo
para mim e, voltando o rosto para o papel, respondeu em voz clara:
“Espanholita”, e sorriu, como que satisfeito pela resposta que dera e mergulhou
novamente nas profundezas de seu ser.
Resposta tão apurada
e sutil mostra o quanto ele é consciente. Raphael vive em esferas mais altas.
Nunca duvidei dos seus instantes de lucidez.
Sua doçura é como a
das crianças, mas, quando fala, a maneira como fala é própria dos homens
adultos, parece consciente de si. Raphael raramente diz as coisas, talvez por
índole, mais do que por vontade, prefere o silêncio.
Jamais gosta de ser
tratado como criança, despreza qualquer manifestação piegas e transparece ar de
satisfação diante da delicadeza. Para mim até hoje os contatos com Raphael são
de uma riqueza enorme e de um mistério lindíssimo. Se assim não fosse, não
teria sentido eu permanecer presente nesta aproximação afetuosa – descer de
Santa Teresa e enfrentar distâncias.
Quando dá maior
atenção ao seu ato de criação, Raphael se torna mais tenso emocionalmente, o
rosto torna-se endurecido, a testa se enruga, ele tosse, se engasga de emoção.
A gente percebe o quanto está sofrendo nesse instante.
Muito importante é
estar atenta aos seus mais imperceptíveis movimentos, anseios ou frases. Sabe
perfeitamente quando se está prestando atenção. Tão sutil que é, percebe quando
me distraio, se me ausento em pensamento. Parece que sabe o que sinto, percebe tudo
que o cerca, tive várias provas disso. Suas antenas perceptoras são
poderosíssimas, parece que lê os sentimentos. E curioso é constatar como ele
dispensa imediatamente qualquer falso sentimento de afeto na aproximação – isso
foi uma coisa que me impressionou muito.
Quantas vezes me vi
e ainda me vejo constrangida diante de sua quase invisível consciência do
comportamento das pessoas. Para mim, Raphael, que vive alado, nos seus raros
momentos de pouso, registra tudo, observa tudo.
Às vezes não me dá a
menor confiança, nem parece dar ouvidos às minhas palavras, e de repente é
capaz de estender as mãos e me acariciar o rosto ou a cabeça, num gesto
indescritível.
Uma coisa que eu
acho tão bonita nele, e que é poético aos meus olhos, é quando suspende os
braços e com a pena faz gestos livres, passando a pena ou pincel em torno da
cadeira, embaixo da mesa, em torno do meu corpo, entre meus braços etc. São
muitas as maneiras de brincar com a sua fantasia. Faz verdadeiros desenhos no
espaço.
Raphael perdeu o elã
para o ato criador, o trabalho de criação. Durante os últimos vinte anos ele
vem mostrando um automatismo quase que unicamente feito de tracinhos
minúsculos, estereotipia que seguiu seu período de apogeu, que foi de 1946 a
1949.
Não se deve pedir
jamais a um artista, seja lá quem for, para desenhar isto ou aquilo, mas, para
motivá-lo de alguma forma e porque me senti bem à vontade, ousei fazer o que
não se deve fazer; pedi a Raphael que desenhasse uma borboleta, ele olhou o
papel e fez uma espécie de triângulo, depois me perguntou: “É assim que se
faz?” – “Sim, Raphael, é assim mesmo, qualquer traço pode ser uma borboleta”.
Com a minha resposta, sorriu e acariciou a minha cabeça. Mais pelo fato de eu
não estar presa à forma das coisas. Importante notar que ele não desenhou
apenas porque eu pedi, ele mesmo quis, espontaneamente. Ele percebe as coisas,
não é tão desligado como se pensa.
Muito pouco a pouco,
cheio de receios e cuidados, ele vem voltando a desenhar, a tocar melhor no
mundo externo, ele já não invade toda a folha de papel, a partir de 1970 chegou
a desenhar rostos humanos, gatos, círculos, pássaros, sol, flores e outros
símbolos enigmáticos para todos nós. Algumas raras vezes os desenhos são
sugeridos por mim. Percebi que ele gosta que eu me faça assim íntima, mas isso
não impede que os desenhos saiam espontâneos de dentro dele. Não dá um só traço
que não esteja de acordo com a sua própria vontade.
Uma vez eu pedi que
ele desenhasse o contorno de minha mão, ele desenhou. Depois, sem que eu
dissesse qualquer coisa, ele mesmo contornou com o lápis a mão dele. Eu achei
isso muito bom, uma forma de se relacionar comigo. Quando estas coisas
acontecem, eu fico por demais feliz. Muitas vezes diz coisas impossíveis de se
compreender. São frases soltas e histórias irreais, absurdas, como nos sonhos.
Mesmo quando suas frases são incompreensíveis, estou em plena atenção, é sempre
bom o ver sair do seu silêncio profundo
e conversar comigo.
Nunca me espantei se
a nossa conversa é um absurdo aparente. Para mim nada se perde, por mais
insensato que pareça. Se ele me diz que estou debaixo da mesa, dentro da caixa
do sapateiro ou do outro lado do buraco da parede, respondo intuitivamente,
como vier a inspiração, e consigo prosseguir por um tempo a nossa conversa.
Tudo é importante neste contato, e o mais profundo respeito é a chave preciosa
para o melhor convívio.
Assim que me retiro do ateliê procuro fazer algumas
anotações. É necessária uma absoluta discrição, caso queira fazer anotações ao
lado de Raphael. Aconteceu-me algumas vezes ele apanhar minha folha de papel
para ler (leu alto, com uma atitude de indiferença). Felizmente eram anotações
de menor importância. A gente aprende demais, esta minha experiência humana,
viva, com Raphael, me ampliou por dentro e por fora. Amadureci como nunca, e
sem perder a minha poética.
Minhas anotações
não foram datadas, apenas me prendi aos fatos.
1. Levei um livro
de Goeldi, coloquei-o em cima da mesa. Raphael olhou com toda atenção, e de vez
em quando dizia alguma coisa sobre o que via e apontava com o dedo.
2. Escondeu minha caneta e me observava como
quem não está sabendo de nada. É a sua maneira de brincar comigo, e parece que
com as monitoras ele também gosta de esconder os objetos e observar a reação
causada.
3. Quando está rebelde não quer saber nem de me
olhar. A rebeldia se manifesta em não querer me dar qualquer atenção, é como se
eu não existisse.
Saiu de perto de mim e foi sentar-se noutra mesa. Fui até ele
e perguntei:
– Raphael , você
não quer ir para a outra mesa e ficar perto de mim?
– Não, estou bem
aqui – foi a resposta clara e decisiva.
Mais tarde, depois
de certo tempo, se levantou, veio para perto de mim e tocou em minhas mãos com
toda aquela leveza que lhe é própria.
5. Entro no ateliê e dispenso carinho a outros
hóspedes (os outros sempre me olham desejosos de atenção e reclamam com as
monitoras, o que me sensibiliza). Aproximo-me de Raphael, ele me recusa indo
sentar-se noutra mesa. Assobia baixinho (muitas vezes, quando está bem
consciente, assobia e canta baixinho). A testa torna-se tensa. Olha para mim
meio de lado e me observa. Fico sem saber o que fazer. Chego até ele e toco em
seu braço, ele se afasta aborrecido. Ao repetir o meu gesto, Raphael puxa os
meus cabelos de leve, mas com raiva. Vi-me desarmada, com jeito saí da sala
devagar. A monitora disse que nunca viu Raphael fazer isso. Tive uma ideia,
comprei cigarros e lhe ofereci em silêncio. Sorriu e tocou em meu anel como se
nada tivesse acontecido.
Inexperiente, eu não havia pensado em cenas de ciúmes. Ele
quer atenção especial, quer sentir em mim exclusiva afeição por ele.
6. Sempre que peço para se afastar um pouco para
eu ver o que ele desenha, afasta-se para que eu possa ver bem à vontade.
Pergunto se quer um cigarro, ele coloca a caneta de lado, se ajeita na cadeira
e espera que eu lhe entregue o cigarro nas mãos, e depois acende o fósforo
(ultimamente ele mesmo acende o cigarro, coisa que não fazia antes).
7. Houve um festival
de canção aqui na STOR. Raphael não quis saber de mim. Procurei conversar,
dizer alguma coisa. Nada adiantava, qualquer tentativa de comunicação me
parecia inútil. Senti-me em grande dificuldade, sem saber o que fazer.
Relaxei-me na cadeira ao lado dele e deixei a intuição brotar de dentro de mim.
Olhando para ele, sério, eu disse: “Raphaelzinho, você não quer saber de mim,
não quer me dar qualquer atenção? Vim só para ver você e você não está se
importando comigo; mesmo assim eu vou cantar para você e você vai me ouvir”. E
comecei a cantar canções populares e cantigas de roda. Raphael permaneceu
quieto; depois de algum tempo olhou para mim e sorriu. Que alegria intensa em
mim! Deu-me as suas mãos e acariciou as minhas. Pegou em meu colar, que retirei
em seguida do pescoço, e ele mesmo o colocou em seu pescoço.
Tudo isso me comove.
É riqueza demais, é como tocar no mágico, no indescritível. As palavras são
poucas, pobres demais para falar de um relacionamento que só pode ser
constatado ao vivo. O que se diz ou o que se escreve é um rascunho muito
longínquo do real. Só a vivência pode falar por si mesma.
8. Normalmente
permaneço em silêncio ao lado dele. Certo dia, querendo forçar uma comunicação
maior com Raphael, pedi que ele escrevesse borboleta; ele escreveu “BORBOLETA”.
Eu, na minha total estupidez e ignorância, pedi que escrevesse ave, ele
escreveu “BOBA”.
Raphael me deu uma
lição incrível. Desconcertou-me completamente. Quem está transmitindo ou
mobilizando quem? Perguntei-me nesta ocasião (14 abr. 1970).
9. – Raphael vamos para a outra mesa?
– Não. Creio que estou
bem aqui. Estou desenhando.
E continuou os seus
traços, dando intervalo com gesto aparentemente gratuito.
10 – Fiz um cafuné
em sua cabeça, como de costume, e pedi que ele também fizesse um cafuné em mim.
Levantou as mãos e tocou em meus cabelos com leveza, e disse:
– Cabelo, cabelinho, fininho.
11 – Você sabe
desenhar um relógio?
Ele estava olhando
o meu relógio, respondeu:
– Não sei, é coisa
muito séria. Marca as horas
12. Hoje Raphael falou muito. Andou pela sala.
Sentou e desenhou como de costume os seus tracinhos. Segurou minha mão e a
colocou com as pontas dos meus dedos sobre a sua cabeça, friccionando-a, como
que pedindo que eu mesma fizesse esse exercício. Parece que se sentiu aliviado
com a massagem. Sorriu para mim, como que agradecido. E me olhou. Seu olhar era
profundo e doloroso. Ajeitou-se na cadeira e continuou a trabalhar. Relaxou-se
novamente, tornando-se um homem grave e angelical.
13. Raphael pega em meu colar e o observa com
todo cuidado. Diz algumas coisas, bem baixinho (não consigo entender o quê). É
um gesto comum nele.
14. – Raphael, eu
tenho que ir embora. Até outro dia.
– Não tem importância (voz mansa, resignada).
15. Hoje Raphael
parecia contente. Assobiava baixinho enquanto preenchia o papel com seus traços
minúsculos.
Estela, uma senhora que vinha sempre aqui na STOR, chegou perto
dele e pediu que desenhasse o rosto dela. Olhou para a mulher, abaixou os olhos
e traçou um rosto.
16. Raphael pegou o meu rosto com as duas mãos
(como de costume) e, como um poeta lírico, murmurou: “Peixinho, peixinho, peixinho”. Sorriu com
ternura, ajeitando-se na cadeira. Olhou-me e continuou seu trabalho.
Estes momentos de
lucidez me emocionam até o fundo da alma. São gestos espontâneos e sadios.
17. Levei alguns desenhos meus para Raphael ver.
Foi um choque emocional. Ficou irrequieto, começou a tossir muito, o rosto se
tornou vermelho. Disse em voz clara, e baixa:
– Bem feitinho,
bonito.
Disfarçando, olhou
para a minha caneta e observou:
– Uma canetinha...
Guardei os desenhos
e segurei suas mãos. Acariciou minhas mãos e murmurou monossilábicas palavras
que não entendi.
Ofereci um cigarro e
permanecemos em silêncio.
Sei que ele percebeu
a semelhança entre os nossos traços.
18. Raphael estava desenhando tudo num cantinho
do papel. Sugeri:
– Raphael, desenhe
no outro lado do papel, seu bobo.
– Seu bobo, vírgula
– foi a resposta clara e firme. E continuou seu trabalho.
Não esquecer que
Raphael estava rompido com o mundo externo, não se expressava com a realidade
externa há mais de vinte anos.
19. Retirei da bolsa um lápis e aproveitei
fazendo o mesmo com a minha carteira de identidade. Coloquei-a sobre a mesa e
mostrei minha foto para Raphael, ele olhou, disse: “A espanholita”, e sorriu.
20. – Raphinha, eu
já vou embora.
– Está bem, está
bem (ele respondeu).
– Você vai sentir
saudades?
Fez que sim com a
cabeça e me olhou rápido.
Este relacionamento
humano tão delicado necessita de alta sensibilidade no trato.
21. – Raphaelzinho,
como são as mulheres?
– Mulher é um bicho
muito esperto (Moacir, um funcionário, presenciou a resposta).
As rupturas com o
mundo exterior não impedem que ele observe como qualquer ser humano. Não há a
menor dúvida de que estão vivos os componentes de afetividade dentro de
Raphael. Eu sei que ele percebe e ele sabe que eu percebo. Os olhares
grosseiros não podem entender as sutilezas da vida, e por isso dizem que tais
sutilezas não existem. Basta saber tocar de leve no coração de um
esquizofrênico (um ser que rompeu com o nosso mundo real-externo) para conhecer
o quanto de calor aí existe.
22. Raphael passou muito tempo cantando baixinho:
_ Tem, tem, tem...
Parecia feliz e
contente enquanto traçava os riscos no papel.
_ Raphael, eu sou
uma gatinha e você é um gatinho, sabia?
-- Todo mundo é um
gatinho – respondeu em voz baixa, e mergulhou nas profundezas do seu ser.
Ofereci um cigarro. Fumou. Levantou-se e disse:
― Eu acho que vou
andar um pouco – e saiu andando pela
sala. Depois voltou, sentou-se, levantou-se novamente, dizendo:
― Acho que vou
sentar ali.
Deu alguns passos e
foi sentar-se perto da janela. Dói muito saber o quanto o peso de um Hospital
massificante sufoca seus componentes humanos. Não vou falar aqui da necessidade
de acomodações adequadas dentro do Hospital, iria me estender demais.
23. Fomos passeando até a janela. Mostrei o Sol:
― Olha como o Sol
está bonito lá no céu!
― O céu é um buraco no meio; respondeu
monossilábico. Um mês depois, no MAM, eu via uma obra de um artista japonês; As
núpcias do Sol com a Lua (o nome da obra)
um Sol imenso com um buraco no meio
24. Entro na sala. Raphael me vê, caminha a meu
encontro (o que é raro) e diz: “Que bonito!” – tira o meu colar do pescoço e
coloca no dele. Conversa comigo frases inexplicáveis, fantasias. Gosta que eu o
escute com atenção. Põe-se a desenhar. Peço que assine o trabalho, ele escreve
AMIGO.
Meus olhos se
enchem de água. Parece algo transcendente, algo de mágico em tudo isso.
Ao sair, falei
baixinho, com a maior doçura:
― Não fique com saudades demais. Fique
tranquilo, eu volto para a semana. Olhou-me com extrema sensibilidade.
Saí do hospital com
o coração entre as mãos. Perplexa na beleza e precisando inventar forças para
continuar um trabalho como este. Há muito de doloroso em tudo isto (14 jul.
197
25. ― Raphael, fale comigo. Você está tão silencioso
Ele não se faz
entender.
― Fale com a
Marthinica.
Nada. Quase na hora
de eu sair, já tendo passado muito tempo em silêncio, estendeu as mãos, segurou
minha cabeça com as duas mãos e disse:
― Marthinica,
Marthinica, Marthinica – e sorriu.
Isso foi em 1971. Em
outubro ele espontaneamente se lembrou de me chamar de Marthinica e um ano
depois, em 16 de outubro de 1973, desenhou o meu rosto com o Sol na cabeça e
outro Sol fora. Para não se ter dúvida de que o rosto era meu, escreveu embaixo
– MARTHINICA.
26. Como vai o meu Raphaelzinho?
― Muito bem.
― Você dormiu bem?
― Dormi muito bem.
E se ajeitou na
cadeira para desenhar.
27. Hoje Raphael cantou baixinho. Depois ficou em
silêncio. Perguntei se ele gostaria que eu cantasse para ele ouvir. Sorriu e
fez que sim com a cabeça.
28. Algumas pessoas
entraram no ateliê e, chegando até Raphael, fizeram perguntas. Ele se levantou
e foi para a janela, deu voltas pela sala e se sentou no chão. Quando as
pessoas saíram fui até onde ele estava, segurei em seu braço e pedi que
voltasse comigo até a mesa. Assim que se sentou, olhou meio de lado e disse em
tom de raiva:
― Perguntando,
perguntando.... e outras coisas que não entendi.
Não é possível
escrever tudo o que aconteceu neste relacionamento, nesta experiência viva.
Tentei com Raphael
o uso de vários materiais. Consegui que ele trabalhasse com guache, aquarela,
nanquim, caneta pilot, caneta de escrever, esferográfica etc. Se ele não saiu
completamente da estereotipia, pelo menos não é tão autômato como antes, agora
ele sabe melhor como lidar com os espaços vazios. E o seu relacionamento com as
pessoas melhorou bastante, ele já me olha nos olhos com mais frequência.
Fazemos parte de
um todo no qual Raphael também está presente como é e pelo que é, no grande
mistério que o cerca em sua doença, no segredo da vida que lhe permitiu criar
obras de arte excepcionais, tão raras em seres normais. Se Raphael tem ganhado
alguma coisa comigo, muito mais tenho eu com ele.
Importante em tudo
isso é dizer que Raphael vive ― vibra,
sente, odeia e ama. E que somos pretensiosos ao pensarmos que somos tão mais
conscientes do nosso próprio ser, tão mais normais em nossas atitudes ou tão
mais sábios em nosso comportamento.
xxxx
__ Trabalho apresentado no Grupo de Estudos do Museu de Imagens do Inconsciente, dia 11 de junho de 1974, RJ.
Publicado na Revista Quaternio do Grupo de Estudos C. G. Jung, RJ, em 1975. Publicação FUNART, MUSEUS (col. Museus Brasileiros), Rio de Janeiro, 1980.
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