Entrei em quarentena em março. E nela
prossigo, com raras escapadas estritamente necessárias, e tantos cuidados que
me fazem parecer um escafandrista. Não que eu sofra de hipocondria. Mas estou
no grupo de risco. Aos 76 anos já me incluo na turma (qual eufemismo usar?
Melhor idade? Terceira idade?) da eterna idade, já que me aproximo da junção
desses dois vocábulos...
A quarentena não me pesa. Na falta de
comorbidade, trago importante experiência preexistente de reclusão – os quatro
anos (1969-1973) em que fui encarcerado pela ditadura militar. E, por vocação,
sou afeito à solidão e à clausura.
Prisão e quarentena se assemelham em
muitos pontos: isolamento físico, distância de parentes e amigos, proibições e
ameaças. No cárcere, de contrair doenças infecciosas, devido às más condições
de higiene; e, agora, de pegar Covid-19. A diferença é que na prisão a chave da
porta fica do lado de fora; agora, do lado de dentro. Sou carcereiro de mim
mesmo. E o segredo para bem suportar uma e outra é não separar a cabeça do
corpo, este retido e aquela virtualmente lá fora...
A quarentena, para quem não precisa sair
à rua e se expor em aglomerações (ônibus, metrô etc.) para garantir o pão de
cada dia, é bem mais suportável que a cadeia: alimentação saudável, livros, TV,
internet, e a liberdade de determinar a própria agenda cotidiana.
Porém, cuidado! O inimigo é
imperceptível e não conhece fronteiras. Pode vir na embalagem de uma mercadoria
ou no envelope da correspondência. Ele mede apenas 85 nanômetros. Para se ter
ideia do que isso significa, um fio de cabelo tem 100.000 nanômetros de
espessura. Para detectar o novo coronavírus, um microscópio eletrônico precisa
ampliá-lo ao menos 80 mil vezes.
Aproveitei a quarentena para fazer o que
mais gosto: meditar, ler, praticar exercícios físicos e escrever muito. Produzi
meu 69º livro, “Diário de quarentena – 90 dias em fragmentos evocativos”, que a
editora Rocco fez chegar ao mercado em meados de outubro.
Quando cessará a quarentena? É a
pergunta que todos fazemos. Ou quando voltaremos ao “novo normal”?
Depende. Para muitos, isolamento é coisa
do passado. Flexibilização geral! Sem medo de surfar nas ondas vindouras. Para
outros, como eu, quando todos forem vacinados. A mera notícia da descoberta da
vacina não será suficiente para decretar o “liberou geral”. Geral terá de ser a
profilaxia e a imunização.
E quando surgirá a tão esperada vacina?
Não me incluo entre os mais otimistas. A que levou menos tempo para ser
descoberta foi a da caxumba, 4 anos. A da ebola, quase 6 anos. A da
tuberculose, 13. A da catapora, 28. E a do HIV está na fila de espera há 40
anos...
O que me constrange, como ser humano, é
ver tanta mobilização global para combater a Covid-19 e quase nenhuma para
erradicar a fome, que mata 24 mil pessoas por dia, cerca de 9 milhões por ano.
Hoje, ameaça 820 milhões de pessoas e pode ultrapassar 1 bilhão até o fim do
ano. Ainda bem que o Nobel da Paz foi concedido este ano ao Programa Mundial de
Alimentos da ONU, o que faz soar um alerta.
Por que será que combater a fome não suscita tanta mobilização quanto o combate à pandemia? A razão denuncia a falta de ética e de solidariedade nos tempos atuais! Ao contrário da Covid, a fome faz distinção de classe. Mata apenas os mais pobres. E pensar que somos mais de 7 bilhões de habitantes deste planeta que produz alimentos suficientes para 12 bilhões de bocas! Portanto, comida não falta. Falta justiça!
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