Dra. Alice Marques dos Santos, Nise e Martinica, a Espanholita, de Raphael Domingues.
Exposição Casa França - Brasil, 1993, RJ.
Lembranças minhas do convívio com Nise e frases desta sábia senhora.
martha pires ferreira
A humanista, muito além de simples
médica, Nise da Silveira, achava que o doente não devia ser visto como doente,
mas como pessoa em sua totalidade. Nise estava légua acima dos jargões da
psiquiatria. Seus clientes eram, carinhosamente, cumprimentados pelo nome para
dar-lhe dignidade, cidadania: Raphael, Emygdio, Diniz, Otávio, José Bastos,
Sacramento, Jair, Léia, Paulo, Francisco, Darcílio, Carlinhos, Adelina e outros
frequentadores das atividades criadoras, seja no Museu de Imagens do
Inconsciente ou na Casa das Palmeiras, ou onde quer que fosse. Dra. Nise fazia
questão de pronunciar o nome de cada um deles com clareza e profundo respeito. Mesmo
ao visitar ateliês ou oficinas de terapêutica ocupacional, dirigia-se com
postura de respeito à pessoa humana, com particular e delicada atenção. Refinada
e acolhedora para com pessoas dilaceradas em sua estrutura psíquica e
emocional. Constatava doenças ou graves problemas, mas jamais diagnosticava
seus clientes, fria e categoricamente. Não criava estigmas, dava espaço para
chances de recuperação. Preferia palavras de um de seus mestres, Antonin Artaud:
“estados alterados do ser”.
Pessoa doce, delicadíssima,
requintada e amável, com espírito de humor invejável era, por vezes, de uma
irritabilidade surpreendente, capaz de dizer coisas terríveis e assaz duríssimas
para com aqueles que por alguma razão insistiam com argumentações que se chocavam
com suas ideias. Quem conviveu com Nise assistia perplexa cenas assustadoras à
queima roupa. Intolerante com as bobagens ditas aleatoriamente. Costumava se
justificar ao dizer: “Este meu temperamento alagoano... com Lampião debaixo da
pele”. Suportava serenamente a ignorância das pessoas em suas atitudes francas
e espontâneas, pela inocência, mas era implacável com a empáfia dos soberbos e
dos “inchados” (como dizia); em desacordo podia ficar muda, estática,
transparecendo frieza com desprezo absoluto.
Não era nada confortável e fácil
conviver ao lado da Doutora, como a chamávamos. Era preciso tomar cuidado com o
que se dizia. Aqueles que desejavam seguir outras linhas de pensamento e
interferindo no seu método com novidades, sem longa experiência e prática, sem
o conhecimento profundo de seu trabalho, simplesmente, dizia com aspereza: “A
porta é a serventia da casa, não me venham com novidades”.
Quando jovens psiquiatras,
recém-formados, se aproximavam de Nise da Silveira, para estudar ou trabalhar,
ela lhes fazia um pedido bem-humorado: “Por favor, lave a cabeça com shampoo de
coquinhos. Esfregue bem!... É preciso limpá-la, para que você se livre do que
aprendeu na universidade.” Estas e outras incríveis saídas que assistíamos
estão transcritas no livro NISE, de Bernardo Horta: “Ah, é? Se não sabe
francês, você vai ler em inglês pra mim... Agora. Leia! Chega de tanta
incapacidade. Vamos! Como não consegue? Consegue sim!... Leia, não se faça de
boba!”. “Ah, minha filha, você ainda está muito crua! Vai ‘ralar coco’ até
sangrar os dedos... Vou lhe dar uma sugestão: esfrega palha de aço na cabeça.
Bastante palha de aço. Vai estudar!”.
Respeitadíssima por sua radicalidade
humana, por seu rigor científico e rica vida intelectual com espírito
transgressor, por sua vivência profunda junto aos doentes estilhaçados em sua
vida psíquica e emocional, dando-lhes oportunidade de se revelarem em suas potencialidades
criadoras. Entretanto, temida, era intolerante para como os incautos, Chamada
de Anjo Duro, por seu querido amigo, Hélio
Pellegrino.
Frases de Nise que,
eventualmente, aqui já publiquei: “Há psiquiatras muito inteligentes, não levem
ao pé da letra quando chamei de burrice
exemplar da psiquiatria. Jung, por exemplo, não era só um psiquiatra, era
um gênio. Foi um homem que levou a psique ao encontro da matéria. Ele reúne
matéria e espírito e se aproxima de algo, em psicologia, muito próximo de
Einstein. Uma coisa é considerar que matéria e espírito são um só. Outra é a
visão cartesiana, que considera a matéria, o bicho, o homem, uma máquina que
funciona isoladamente com a razão no alto da cuca comandando”.
“Sabemos muito pouco da mente, da natureza
psíquica, das emoções. Desenhar, pintar, modelar, gravar, depois colocar os
nomes, datar os trabalhos e guardá-los em série estas imagens plásticas para
pesquisa é ter a possibilidade de um dia, no futuro, se chegar a uma
compreensão mais clara e profunda do mundo interno destas pessoas tão
enigmáticas, tão misteriosas. A ciência sabe muito pouca a este respeito. E o
método para se aproximar de um conhecimento revelador é basicamente o pré-verbal,
a pré-palavra. Temos oficinas de encadernação, carpintaria, música e teatro, dança
e mímica, botânica, bordado e costura. Atividades expressivas podem apontar os
caminhos da vida interna.”
“A pesquisa e o estudo a partir das vertentes imagísticas estão apenas
começando. Somente o ponto do iceberg despertou. A partir do século XXI, os
interessados neste assunto devem se dedicar intensamente, pois das imagens
surgirão não só revelações sobre o corpo psicológico e físico, como descobertas
das potencialidades mentais dos seres humanos. As descobertas futuras sobre o
inconsciente revolucionarão a história da raça humana.”
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Foto: Dra. Alice Marques dos Santos, médica psiquiatra, acompanhou e colaborou com Dra. Nise por muitos anos. Em breve lhe farei uma homenagem. Grande pessoa, mulher corajosa e dedicadíssima aos seus clientes, seguindo os passos de Nise, também, contribuiu em muito para a humanização da Psiquiatria no Brasil. Primeira mulher Diretora de um Hospital Psiquiátrico na América Latina, Hospital Odilon Gallotti, Engenho de Dentro, RJ. A primeira pessoa, realmente, a abrir as portas do Hospital para que os detentos pudessem sair às ruas e dar um passeio, libertos das grades. Testemunhamos este feito precursor. Alice e Nise eram grandes amigas, viajaram juntas para a Europa, Suíça, Zurique. Frequentaram o Instituto C. G. Jung. Viva Alice! Anja amorosa que se mantinha silenciosa, que, usando método de Nise, fez milagres terapêuticos.
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