domingo, 19 de julho de 2020

Eixo Vida _ Morte _ Vida _ Travessia


              A palavra morte, ou morrer, traz em si o desígnio do fim de algo que pode ser a vida de um ser humano, um animal, uma flor, um laço amoroso, um acordo, um tempo de paz, um governo, uma nação e, mesmo, a morte de uma civilização. Falar sobre este assunto, geralmente, constrange as pessoas ao ouvir qualquer menção a esta palavra imbuída de mistério e indagações, sem respostas absolutas em seu contesto de finitude.
            Podemos falar da morte de uma pessoa; não da morte do espaço; falar do fim de coisas do tempo, não da morte do tempo em si mesmo; do fim da tempestade, mas não de sua morte; do fim de uma felicidade, harmonia, provisões, água, fogo ou alegria, mas nunca sua morte, apenas em sentido figurado. Não se esgotam as reflexões essenciais sobre os desígnios do fim de tudo que nos cerca, em particular a morte com suas complexidades.
            Simbolicamente, a morte nos remete a tudo que é perecível, por finitude inevitável, na existência, na criação. Ela nos conduz às reflexões sobre seu significado abissal _ das profundezas tenebrosas dos reinos dos Inferno, abismo do Tártaro ou às maravilhas dos Campos Elísios, ou ainda, do vazio seco e árido amargo do finito. A morte pertence, efetivamente, a transformação vital _ a semente que morre, que ao apodrecer se faz reflorescer em vida, será sempre, aos nossos olhos, milagre no ciclo da natureza. A morte é revelação e introdução aos ritos de passagem nas idades, culturas, acontecimentos religiosos e sociais. Abre caminhos para uma nova etapa da existência: da infância para a juventude; da mocidade para a velhice; do vigor orgânico das células para a inevitável inatividade progressiva. Ela nos remete ao repouso do Sol seguido da noite escura à espera da Aurora luminosa exuberante a cada manhã.
Sempre nos convida às reflexões, por vezes, tremendas e cruciais sobre o sentido do viver. O Destino evidencia-se numa crença profunda de ordenação absoluta e irrevogável que na Antiguidade delimitava os poderes individuais dos seres humanos. Essa ordenação vinha consagrada de obrigações morais e éticas, não podendo portanto ir além de seus limites ou fronteiras, sob o risco de terríveis danos. Na Antiguidade as demarcações determinadas pelo Destino eram representadas pelas Moiras, na figura de três mulheres velhas, vividas, de expressões severas _ Cloto “a fiandeira” que fia desde o nascimento até o fim a trama da vida humana; Laquesis “distribui” ao fixar um ponto nesta trama, enrola o fio e determina a sorte; Átropos “a  irremovível” corta o fio quando a existência chega ao seu termo. Elas representam no mito clássico os três momentos da vida – nascimento, fecundidade criadora e morte.
Refletir sobre o morrer é apreender o significado maior do se estar vivendo em inteligência racional, intelectual e espiritual em pertencimento no corpo sensível, perecível, finito, que acaba, que tem fim.
Os místicos intuem, por percepção aguçada, níveis mais extensos da existência, por ânsia de infinitudes, sem definir verbalmente, a experiência vivida em essência, sutilezas da alma, da vida espiritual na presença e continuidade da natureza humana como um todo.
Nise da Silveira (1905-1999), brasileira, pensadora por excelência, em seu último ano de vida, 1998, me dizia: “Martha, você precisa ensinar as pessoas a morrer” _ “Como, Doutora?”. E ficávamos em silêncio, num espanto sem respostas ou com reflexões em torno deste assunto_ indagações. Em sua obra Cartas a Spinoza (Francisco Alves, 1995), Nise aborda com clareza suas apreensões e sensibilidade sobre esta questão; anseios de eternidade, extensão. Nesta ocasião, fins de sua vida, Nise, disse para Odete Lara: “que não se sentia convenientemente preparada para morrer”, em conversas sobre o Zen Budismo e o Livro Tibetano do Viver e do Morrer. Poderíamos dar inúmeros exemplos de questionamentos sobre a vida neste sentido.
Sobre o pos mortem nada sabemos, efetivamente, nada pode ser dito, apenas apreendido. Em muitas culturas encontramos ricas abordagens sobre o significado essencial da Vida _ paradoxos de forças contrárias coexistentes _ sua totalidade, união do céu com a terra.
Sentimento de angústia diante das notícias de morte, do morrer, da finitude, seja lá o que for. Desconheço de algum período, momento na história da humanidade, que se tenha valorizado tanto a vida, e, por contradição inconcebível, banalizado tanto a vida como a morte, como agora, nesta pandemia coronavírus-19, com este inimigo silencioso, invisível, que surpreende a todos, que se estende por todas as nações, de norte a sul, de leste a oeste, nos mais impensáveis recantos da Terra _ nossa Casa Comum _ confrontos de vida-morte-vida em todos os níveis; pessoais, culturais, industriais, econômicos, financeiros, governamentais e mais.
A Mitologia universal é repleta das mais amplas abordagens em torno da morte e suas projeções. Assim viveram os povos da Mesopotâmia e do Egito. Penso nos gregos, em Hesíodo e Homero, que com seus cantos poéticos nos deixaram maravilhas do universo mítico _ aventuras e desafios das divindades em suas múltiplas funções: Urano/Céu, Cronos/Saturno, Zeus/Júpiter, Atena, Poseidon/Netuno, Apolo/Sol, Artêmis/Diana/Lua, Hermes/Mercúrio, Ares/Marte, Afrodite/Vênus, Hades/Plutão, Ceres/Demeter, Hécate, gigantes, ciclopes, titãs e imensidão de configurações terríveis, assustadoras, tenebrosas. As culturas científicas, pós séc. XVII, com seus dogmas e premissas teóricas, baseadas na lógica formal, na racionalidade, se afastaram deste imenso e precioso legado simbólico do mundo dos Mitos. Perdeu o Ocidente, o Oriente Médio; Judaísmo, Cristianismo e Islã, arraigados no monoteísmo?!
O mundo Oriental, manteve-se constante em suas bases tradicionais; configuram o valor da existência, da vida e da morte alinhados à imensa gama de explanações e significados em sua riqueza mítica própria; Hinduísmo, Vedanta, Budismo, Tao e Zen. Não podemos esquecer de outras culturas com suas riquezas milenares; Afro, Andinas e Indígenas, que se mantêm vivas, atuantes _ ritos de passagem, de vida e morte; mitos, iconografias, cânticos, textos.
A linguagem da Astrologia, com forte influência greco-romana, é repleta de rica simbologia sobre o sentido da morte-vida-renovação-reestruturação da vida, quando se refere ao Signo de Escorpião, os Planetas Marte e Plutão/Hades e a 8ª Casa Zodiacal, em síntese.
O arcano maior do Tarô, a carta 13, a Morte _ tem como referência reflexões sobre a potência das forças vitais, questão da imortalidade por transformação, o renascimento. Mudanças profundas e radicais de passagem _ iniciação.
Na Alquimia, processo do Opus Alquímico, a grande transformação, o iniciado passa por fases _ morte e renascimento _ mergulho em recipiente fechado de purgação. Privado de qualquer contato com o mundo externo (como, agora, estamos todos, distanciado em nossas casas). O processo alquímico remete, em sua essência, à renovação pessoal pela passagem do estado de Nigredo, ao Albedo e por fim ao Rubedo _ conclusão do Opus _ renascimento para níveis mais elevados, união de forças opostas. Estados mais depurados de consciência, de vida em seu todo.
Termino esta minha reflexão com o significado da crucificação, que no cristianismo tem Jesus Cristo, o peregrino de Nazaré, no centro da Vida, ao afirmar que a Vida vence a morte para a eternidade. A tradição oral, transcritas nos evangelhos, nos legou que o Anjo se dirigiu para Madalena: “Surrexit, non est hic!” ressuscitou, não está aqui. Apreendo que disse para mim mesma.
Estamos na transição, ritual de passagem, fins de uma civilização _ Era de Peixes para Era de Aquarius, reencontro da humanidade inteira _ para Nova Civilização?! Desejo, minha Esperança.

Martha Pires Ferreira _ junho/julho, 2020

Pintura -Axel Ender
(1853-1920)

2 comentários:

Eleonora Cruz Santos disse...

Profunda reflexão...maravilhosa! Lendo, fiquei pensando, me meu imaginário, o quanto precisamos trocar e aprender com os mais velhos, quanto sabedoria há na construção da vida, na história. É o saber que nos nutre e pode nos fazer seres melhores. Hoje Mujica escreveu no El País, "hoje, se eu pudesse acreditar em Deus, diria que a pandemia é uma advertência aos sapiens".

Martha Pires Ferreira disse...

Eleonora, querida, tudo o que estamos vivendo é sem dúvida uma profunda advertência da Mãe Natureza _ expressão de D's _ recado aos humanos. Vou ler o sábio Mujica, agradeço referência.