Aniversário aos 90 anos - 15 de fevereiro
Nise da Silveira nasceu em Maceió
/ Alagoas em 15 de fevereiro de 1905. Viveu no Rio de Janeiro onde faleceu em 29 de
outubro de 1999.
No oráculo Google acionando o seu nome é possível encontrar as mais ricas informações sobre esta revolucionária, doce,
meiga, rebelde com vasta cultura e humaníssima pessoa, Nise Magalhães da Silveira.
Na Revista Quaternio nº 8 – 2001, edição do Grupo de Estudos C. G. Jung, em sua homenagem, foi
publicado este texto meu.
Recortes, na ponta do lápis.
Martha
Pires Ferreira
Ninguém pode substituir Dra. Nise da Silveira, mulher
tão adiante do seu tempo.
Sou invadida por saudades profundas de minhas amigas, colaboradoras
mútuas, por tantos anos, Dra. Nise e Dra. Alice Marques dos Santos. Sei que nos
encontraremos, “noutras galáxias”, noutras substâncias.
Em maio de 1968, fui à casa da
doutora com meus desenhos bico de pena. Decisão imperiosa de Darel Valença. Ele
armou o nosso encontro.
O desejo de conhecê-la se deu, especialmente, em
razão de C.G. Jung. Ele despertara em mim interesse absoluto. Há quatro anos,
eu o vinha lendo, indicado pelo meu professor Dr. Manfredini (UERJ). Sensível e
delicada, Dra. Nise convidou-me para seu
Grupo de Estudos.
Minha admiração por ela firmou-se quando percebi o
quanto era capaz de encarar e desafiar a própria sombra sem qualquer medo. Não
possuía máscaras. Eu própria arrancara a minha, como felina. Dra. Nise
revelava-se autêntica; ora luminosa, irradiante, suave, ora sombria, obscura,
temível.
Identificávamos-nos no sabor das leituras escolhidas:
arte, filosofia, psicologia, literatura, história das religiões. Com ela,
aprendi a dar larga importância à mitologia, a mergulhar nas imagens
arquetípicas e, mais tarde, em 1974, na alquimia.
Muito me atraía
sua clareza política e a do brilhante homem que foi seu marido, Dr. Mário
Magalhães da Silveira, médico sanitarista. Eram contestadores veementes;
adversários radicais da classe dominante, espúria. Defensores dos mais fracos e
excluídos. Jamais coniventes com uma sociedade injusta e arrogante.
Admiravam-se, reciprocamente. Dr. Mário era, em certas ocasiões, terrivelmente,
mordaz. Senhor de sagacidade, perspicácia e generosidade ímpar. Grande
provedor. Gostavam de receber com prazer os amigos em sua mesa fartíssima.
Círculo seletivo, que ia de ministros de Estado, embaixadores, intelectuais, ou
artistas, ao porteiro do prédio, onde morava na Rua Marquês de Abrantes,
Flamengo. Os dois com temperamentos bem diferentes viviam com veracidade. (Dr.
Mário faleceu em 1986).
Nossos vínculos se definiram quando em 1969, fui para
o Museu de Imagens do Inconsciente, para o STOR, a pedido dela, para ficar, em
afetuosa convivência, ao lado do desenhista genial, Raphael Domingues, (Quaternio,
1975).
Dra. Nise amava a riqueza dos Contos de Fada. Nós nos
deliciávamos com eles. Eu, desde menina, lia os contos tradicionais. Matrizes
do inconsciente coletivo de cada povo, pontes para a plenitude da consciência,
diálogo entre as formas brilhantes e tenebrosas. O significado do caminho da
individuação, da redenção. Daí eu ter ido colaborar na Casa das Palmeiras,
de1986 a 1990.
Gostávamos do que é simples: chá, biscoitinhos e
torradas com geléias. Por vezes um queijinho francês, chocolates suíços ou
belgas, dava aquele toque ainda mais refinado, em conversas amenas, rodeadas
dos amigos, sempre acolhidos amorosamente.
Nossa amizade estacionaria nas portas do castelo
interior, caso o preconceito para com a Astrologia, a atingisse. Para surpresa minha,
início da década de 70, Dra. Nise me pediu um favor, em segredo: “Gostaria que
você fizesse meu horóscopo”, seus olhos atentos e apreensivos alcançaram os
meus. Sorri. Ela me ofereceu sua data de nascimento: dia, mês, ano, hora e
local. E foi Dona Nazinha (Maria Lydia) sua mãe, pianista, quem me confirmou os
dados - 15 de fevereiro de 1905, às 2h10 da madrugada, em Maceió, Alagoas. “Ah,
agora explicam as minhas contradições, esse Capricórnio freando, essa ferrenha
obstinação, e este Aquário rebelde, libertário”. Como sabia das coisas!
Nossas afinidades percorriam outras áreas - a dos
animais de sangue quente. Adorávamos os gatos, em particular. Seus nervos
felinos, sua doçura e seu mistério nos fascinavam. Deuses.
Dra. Nise conseguiu ir muito além da linguagem
teórica, do uso verbal. Criou ambientes propícios para que as imagens arcaicas
emergissem, com intensas cargas afetivas, das profundezas do inconsciente.
Imagens expressas em puro gesto das mãos dos emocional e mentalmente feridos.
Era essencial para essa grande cientista o espaço para as criações artísticas.
As sequências de imagens projetadas possibilitavam a leitura arqueológica da
psique. O fio de Ariadne. Precursora do pensamento de C. G. Jung, na América
Latina, catalisou como jamais se podiam imaginar surpreendentes revelações do
gênio da arte: Raphael Domingues, Emygdio de Barros, Octávio Ignácio, Isaac,
Adelina Gomes, Carlos Pertuis e outros. Senhora do tempo e do espaço, tocou o
não verbal, conviveu intensamente com o verbal, o coloquial e o cientifico, e
ultrapassou o verbal. Olhar e silêncio.
A sua obra é um patrimônio da humanidade. A
necessidade de sua preservação é indiscutível.
Em maio de 1998, percebendo alterações em sua mente,
preocupada, me disse: “E eu que era sempre tão alerta, tenho tido claudicações”,
e ajeitava os cabelos, numa pausa extensa. As percepções destas alterações não
a deixaram esmorecer, jamais. Diálogos contínuos do consciente com o
inconsciente, a sustentavam no insondável da existência.
Carinhosamente já há muito tempo eu só a chamava de
dona Gatilda, e passei a ficar mais e mais presente ao seu lado.
Nesses últimos períodos de sua vida poucas eram as
coisas que a atraiam. Praticamente, só os animais a encantavam. A força
instintiva do animal a fazia renascer, permanecer produtiva. Realizou, com
Sebastião Barbosa, fotógrafo, seu último livro (Gatos, a emoção de lidar;
Leo Christiano; Ed.1998). Procurava recuperar forças e pensava em escrever
sobre Laing e, também, sobre Marie-Louise von Franz, sua analista e
supervisora. Para a Dra. Nise, esta sua grande amiga era a mulher mais
inteligente do mundo.
Perto do Natal,
teve uma fortíssima pneumonia e viveu a solidão aterradora do sentimento da
morte. “Martha, você precisa ensinar as pessoas a morrer”, “As pessoas não são
preparadas para morrer”, disse-me, várias vezes.
Em 15 de fevereiro de 1999, dia do seu aniversario, falou-me
tranquila e firme: “Estou perto da morte”.
Percebi que a morte se anunciava: - Doutora, a senhora tem sonhado?
- Sim.
- Com que? Perguntei-lhe.
- Com os mortos, eles estão vindos.
- Fique tranquila querida, deste momento nada sabemos. Eu estou aqui,
estarei sempre aqui, ao seu lado.
Adormeceu.
Embora dela
emanasse uma força inacreditável, passei a chamá-la de minha filhinha, diante
da fragilidade e da inexorável desagregação do corpo. Ela não temia a
mortalidade corpórea. Uma profunda reflexão se fazia presente diante do
mistério da vida, um certo medo mortal da certeza do imortal, da plenitude do
ser, substância infinita.
Nos seus últimos
dias, prisioneira no CTI (ao lado dos mais pobres), eu falava para ela da
poesia de João da Cruz e lia seu livro “Cartas a Spinoza”. Um dia ao ler a VII
Carta, as lágrimas escorreram até os lábios. Nossos olhares se encontraram. E
sorriu repleta de magnitude.
No CTI, estava
todo o tempo, cercada de amigos que se desdobravam em calor humano tentando
aliviar tanto sofrimento. Revezávamos-nos, um de cada vez. Foram quase
cinquenta dias. Via dolorosa. Gestos de indignação e resignação. Força de
mártir e lucidez admirável.
O inefável ocorreu
na tarde de 29 de outubro de 1999, véspera de sua morte. Fez-me sinal com a
cabeça, querendo me dizer que não estava sofrendo. Eu havia suspirado a sua
dor. Com iluminado sorriso e gesto, de sim, sempre com a cabeça e as mãos,
concordava comigo quando lhe disse que todo o seu sofrimento nada representava
comparado à vida de imolação de Raphael, Isaac, Jose Bastos, Adelina,
Carlinhos...
Esse sorriso
resplandecente permanece inalterado, como contemplação, diante da beleza da
vida.
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