A bela adormecida no bosque
ERA UMA VEZ...
...ninguém sabe onde ou quando. Os Contos de Fada falam de
coisas profundas, são imagens preciosas transmitidas pela tradição oral popular
desde idades imemoriais, quando o homem arcaico ainda vivia num universo
mítico. Esses contos maravilhosos, em sua origem, não se destinavam às crianças,
mas já se caracterizavam, essencialmente, pela presença de elementos do feérico
e do extraordinário.
Martha Pires Ferreira (Revista Atlante, Nº3, Ano 1, 1990, SP)
Na antiguidade, os Contos de Fada ocupavam um espaço precioso
nas Escolas de Mistério e Escolas Iniciáticas. Eram compreendidos
como um instrumento que auxiliava os rituais de passagem. Eram tesouros que as
pessoas guardavam para transmitir oralmente sem esquecer nenhum detalhe para
que tudo fosse preservado como valores sagrados. Os antigos sabiam que o mínimo
pormenor jamais poderia ser esquecido para que o conto conservasse a sua
compreensão total.
Histórias cheias de encantamento foram registradas em
terracota, na Mesopotâmia. Todo o Oriente conheceu esse universo do fantástico
sem muitas fronteiras: Egito, Índia, Japão e China. Ele aparece, também, na
cultura judaica e persa. Nas matrizes do imaginário, o observador e a realidade
se entrecruzam, se misturam e se completam.
No entanto, foi na Europa do final do século XVII, e início
do século seguinte que essas histórias começaram a ser compiladas e surgiram as
primeiras coleções que ainda hoje são fontes básicas de referência. Em 1697,
surge na França o livro de Charles Perrault.” Contos de Ma Mere Love” (Contos
de Mamãe Gansa), que no Brasil também ficaram conhecidos como “Contos ao Pé de
Fogo”, onde aparecem personagens familiares como “Cinderela” e o “Gato de Botas”.
Só mais tarde em 1715, é que Perrault publica “Pele de Asno”, a história de uma
princesa que foge de casa e vai tomar conta de porcos no chiqueiro de uma
fazenda para escapar do pai.
No século XIX, os contos ganharam status de disciplina
científica. O pesquisador Jacob Grimm, Fundador da filologia alemã, e seu irmão
Wilhelm decidiram fazer um levantamento de contos populares para registrar o
que havia sido conservado da mitologia nas narrativas orais encontradas na
Alemanha. Como sistemas de trabalho usaram o método Savigny de investigação
histórica, mas na verdade os seus “Contos Populares”, publicados entre 1812 e 1815,
com redação final de Wilheln Grimm, conseguiram escapar dos filólogos e fazer
as delícias das crianças e adultos de muitos países.
Os contos de fada mobilizam as nossas emoções. Eles podem nos
dar a sensação de algo imortal e pleno por tocar em nossos medos e na coragem
existencial _ a luta entre a luz e as trevas _ que pertence à raiz do universo
antológico do homem (ser humano). Para caracterizar esse combate eles usam uma
infinidade de recursos; estão sempre presentes os elementos sobrenaturais, os
dons admiráveis, a coragem incomum. O arsenal de equipamentos inclui tapetes voadores,
varinhas de condão, anéis, espelhos, caixinhas e outros objetos com poderes
mágicos. Aparecem feiticeiras, bruxas, animais com superpoderes, gigantes; ogros-diabos,
dragões e monstros variados. E é constante a presença de homens velhos e mulheres
velhas, cujas ações demonstram estados psíquicos altamente desenvolvidos, e uma
legião de pequenos seres que emolduram as histórias como: duendes, anões, elfos
e fadas variadas.
O cenário básico sempre apresenta uma aventura onde príncipes
e princesas, reis e rainhas, camponeses e mercadores, irmãos e irmãs, mães
dedicadas e madrastas perversas acabam envolvidos na mais complexa trama existencial.
As atenções partem a seguir para um personagem central, que se apresenta como o
jovem filho ou a filha rejeitada, que pode ser a mais tola, e personifica toda
a lógica da derrota, mas que se revela no decorrer da história como a
maravilhosa heroína ou a jovem recompensada.
O príncipe, o herói, o filho do lenhador _ as variações são
muitas _ então partem rumo à aventura. E em geral, para conseguir provar a sua
coragem e merecer a recompensa ele pode usar algum auxílio mágico. O talismã
entregue ao herói – que pode ser um anel, uma pedra preciosa, um pão, sangue ou
algum outro símbolo _ é, em muitos casos, a única possibilidade de confrontar
essas regiões sem o risco da destruição. É necessário vencer algumas provas e
atravessar a obscuridade _ como nas provas de iniciação as sociedades secretas
_ para alcançar a vitória sobre as forças ocultas. O grande final é sempre um
triunfo, como as núpcias do príncipe com a princesa que sentenciam que eles
serão felizes para sempre. O majestoso mistério da conjunção dos opostos então
se realiza.
Nos Contos de Fadas existe sempre um intuito moral educativo,
mas a sua finalidade não é moralizadora. Os requisitos básicos para o triunfo
do herói devem ser envolvidos em virtude, bondade, coragem e confiança num
poder maior que o orienta. Diferenciando-se das fábulas, jamais o animal
aparece como figura preponderante, e sim um auxiliar possuidor de dons
sobrenaturais. São raposas, cavalos, lobos, peixes ou outros animais falantes.
A história sempre parte de um princípio ordenador, um certo estado de harmonia
que se desintegra. Com a aventura do herói e o perigo, o caos se instala.
Atravessar o perigo e colocar em risco a própria vida é a sina do herói que, ao
vencer os poderes antagônicos, alcança a redenção.
O fascínio dessas sagas, epopeias e aventuras tem uma vida
perene, tanto as versões de Charles Perrault quanto a dos irmãos Grimm
registram narrações ancestrais que pertencem a muitos povos e gerações.”
Chapeuzinho Vermelho”, “Cinderela”, “A Bela Adormecida” ou “Branca de Neve”,
por exemplo, são clássicos que atravessam imbatíveis o passar dos séculos. Na
verdade, os Contos de Fada mostram experiências afetivas vividas no cotidiano, cheias
de ambiguidade e paradoxos. Mas estas verdades do mundo subjetivo foram
vivenciadas e interessam a todos os povos do Oriente e do Ocidente.
Não só as crianças, mas, também, os adultos gostam de ouvir
essas histórias, que o brasileiro Câmara Cascudo as chamou de Contos de Encantamento. Elas têm uma
estrutura tão bem construída que mantêm sua força de atração para diferentes
idades. Atualmente, porém, é preciso atenção para que não se percam, por falta
de refinamento de uma época que distorceu os seus valores. Essas preciosidades
precisam passar adiante, para novas gerações, sinalizando seu conteúdo mágico.
Nesse final do século XX, o espiritual é confundido com
práticas objetivas e não se tomam mais em conta os “aspectos de sombra”
contidos na espécie humana. Criou-se uma divisão que separa o sujeito do objeto,
o agradável do desagradável, o sagrado do profano, como se esses elementos não
fizessem parte de uma só cosmogonia. Uma aventura de príncipes e heróis, fadas
e princesas é um processo simbólico, mas de fácil entendimento para explicar as
grandes mudanças. A trajetória do herói é a da grande transformação, é a
metamorfose de um ser, a sua passagem de um estado elementar e primário para outro,
em que os níveis de consciência são mais elevados.
Num momento de cisão entre o pensamento científico e o pensar
mágico é natural que acontecessem cortes; mas é muito recente na história da
humanidade este retalhamento, a distinção entre o saber científico e as vivências
do sagrado. Os Contos de Fada reavivam uma época em que a visa subjetiva não
era isolada da vida objetiva e as duas completavam um viver integrado, eram
parte da mesma realidade. É por isso que um Conto de Fada ainda é um dos
instrumentos mais ricos para a integração da natureza interna da criança e
também tem a sua força para os adultos que, por alguma razão, se perderam na
trajetória da vida. Com o cinema e a televisão, o apelo para o visual tornou-se
muito poderoso e ocupa um espaço muito grande. Entretanto é preciso conservar, também,
a força desse universo que se transmite oralmente, como um segredo, de ouvido a
ouvido. O poder encantatório da tradição oral é peculiar, cria evocações e
magia que não se devem perder. A memória do que se ouve e o poder sonoro de uma
narração têm um valor insubstituível que não é equivalente a uma narração
visual. Os Contos de Fada são indispensáveis para a formação psicológica e
intelectual do ser humano. E eles sobrevivem porque sua estrutura é integra e
não permite nenhuma simplificação. Não se pode eliminar a bruxa ou um detalhe
da ação ou as situações que satirizam padrões de comportamento _ a força dessas
histórias está em sua totalidade. Prestar atenção a esses contos, hoje, e
resgatar os Contos Maravilhosos em sua mais remota estrutura são uma chamada à
consciência para um futuro milênio mais humanizado, mais poético e
espiritualizado, integrado em suas polaridades der sombra e luz.

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