Autoconhecimento _ 2000

             Martha Pires Ferreira

    A simplicidade é a base para a caminhada do autoconhecimento em sua totalidade.
    Como peregrinos, atravessamos desertos, sombras, solidão e medo. A caminhada interna exige de nós desapegos. Esvaziamentos do si mesmo egoísta. Necessário retirarmos disfarces, defesas, máscaras. O autoconhecimento se inicia ao olharmos, corajosamente, para nossos recantos mais obscuros e cheios de limitações. Mergulhando em nós mesmos, aprendemos a amar nossa dimensão, nossa natureza humana repleta de contrastes, de impermanências.
    O autoconhecimento requer observação profunda do que se passa em nosso interior. É necessário nos distanciarmos um pouco das solicitações externas, das imposições de uma sociedade de consumo repleta de tentadoras surpresas, a cada dia. Importante observarmos o quanto, erroneamente, confundimos progresso científico, tecnológico e econômico com desenvolvimento civilizatório. Vivemos no apogeu da sofisticação em sucessivos novos inventos e, no entanto, nossa qualidade moral e espiritual é, alarmantemente, de declínio moral e decadência espiritual. O autoconhecimento não está restrito à nossa corporeidade física e estética, saúde e beleza, nossa vida emocional e intelectual. Indo mais longe, nas profundezas do nosso ser, percebemos a importância da vida espiritual. A vida espiritual é inerente à vida humana. E é a esta que aqui nos referimos.
    Cabe a cada um de nós, com simplicidade e humildade, procurar saídas sensíveis de solidariedade, fraternidade e afeto para com o outro. É o outro que revela nossa dimensão. O outro, nosso igual, e nosso diferente.
    Na relação próxima e amorosa para com o outro, nos vemos, nos conhecemos. Percebemos nossa capacidade doadora, nossas defesas. Recusa ou comunhão. “Pertencemos radicalmente uns aos outros, grande intuição do Cristianismo”, nos diz Thomas Merton. Através do olhar do outro, ampliamos nossa capacidade de nos olharmos. Ninguém conhece a si próprio se isolando, embora somente no silêncio interior possamos nos enxergarmos tal qual somos.
    Conhecermo-nos a fundo não nos distancia das obrigações cotidianas, por vezes exaustivas. Bem pelo contrário, o trabalho nos oferece ampla visão de que tudo tem um sentido maior, que transcende nossa compreensão e inteligência.
    Em desprezando aspectos da vida, sentimos desprezos; em amando, sentimos amor. Na indiferença, a indiferença. Na grandeza da alegria, a alegria.
    O ser humano contemporâneo, cercado de maquinarias sofisticadíssimas, perdeu o sentido do significado simbólico. Perdeu a capacidade de apreender nas imagens visíveis a plenitude do invisível, na beleza da matéria, reflexos do divino. Somos cegos para a realidade absoluta, unificadora, que tudo contém.
    Autoconhecimento não é egolatria, é esvaziamento de si, esquecimento de si, para uma percepção de si mesmo altamente sutil – “É necessário que Ele cresça e eu diminua” - João 3, 30.
    O conhecer-se acontece como um segredo nos recantos da alma, tanto para o intelectual como para o lavrador. Na plena atenção, nos conhecemos e conhecemos a fonte de onde tudo emerge e para a qual tudo converge. O silêncio e a quietude nos ajudam a penetrar mais intimamente em nosso eu profundo. É nas profundezas da alma, com pureza de coração, que encontramos Deus. Aquele que se destinou a esta peregrinação radical de despojamento da alma, conhece a Deus pela comunhão, pela união mística. São João da Cruz e Tersa d’Ávila descrevem esta jornada – Obras Espirituais e As sete moradas ou Castelo Interior – com beleza inigualável.
    O autoconhecimento nos coloca diante de algo maior do que nós mesmos. Contemplamos nossa cosmicidade. O absoluto se reflete em nós. Não há divisão entre criador e criatura. Somos invadidos, nós pequeninos, pelo amor do Criador. Conhecemo-nos através de Seu Amor. E amamos as Suas criaturas com ternura – fogo, terra, ar e água, planetas, animais e seres humanos – sem exclusões. Compaixão para com o mal. Tudo é fonte de revelação.
    Não vivemos para abstrações, mas sim, para realidades palpáveis. O conhecimento de nós mesmos, nos coloca diante do grande mistério da vida, da inefável presença de Deus, Bondade infinita.
  __Artigo publicado no Boletim Meditação Cristã _ Nº 16, ano 2000.
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